Thursday, March 01, 1990

a sombra do passado (i)

Carta Aberta ao Futebol Brasileiro, de João Saldanha -- trechos.

"Pelé é o jogador mais sacrificado do futebol brasileiro. Ganha por jogo -- e precisa jogar, porque senão o seu clube não ganha. Acho que o Pelé faz muito bem. Mas ele é um ingênuo, uma criança, não sabe que é o homem mais explorado do mundo. Em torno dele, muita gente enriqueceu.

Contra esse rapaz têm sido cometidos os crimes mais estarrecedores. Não sei se vale a pena lembrar um caso em Milão, em 1963. Quando o chefe da delegação disse que Pelé teria de entrar em campo, o doutor Hilton Gosling recusou-se a fazer uma infilração de novocaína para que ele entrasse no circo romano para satisfazer as hienas que estavam nas arquibancadas. Pelé jogou dez minutos. Se não jogasse, não haveria jogo. O contrato com a Federação Italiana obrigava a sua presença.

Vem a Seleção Brasileira, e eu estou no meio do negócio. Feitos os exames médicos, são-me apresentados os problemas, mas superficialmente, sem nenhum caso sério. Fomos para o campo jogar a primeira partida com o Pelé, à noite.
(...)
Aconteceram duas ou três jogadas em que não era possível ele errar. Perguntei ao médico se havia alguma problema com Pelé. Ele disse que não. Veio outro jogo. Perguntei novamente ao médico e ele respondeu que não havia qualquer problema com Pelé. Quando Pelé errou duas ou três jogadas em outro jogo noturno, eu disse:

- Pelé errou aquelas jogadas porque não enxergou a bola.

Imprensei o médico e disse que notara algum problema com Pelé.

- Quero um exame completo de saúde da pona do cabelo à ponta dos pés. Jamais botarei no campo um jogador que não tenha condições físicas para disputar uma partida.

Então o doutor Lídio me confessou que Pelé sofria de miopia. Eu jamais revelei esse problema. E lamento que o doutor Lídio -- informante de um jornal do Rio, não sei se como assalariado ou gratuitamente -- tenha revelado isso.

Sobre minha demissão: o Havelange me chamou e me demitiu. O ato nada tinha a ver com provocações disso ou daquilo, mas sim com a revisão que eu havia pedido para Pelé.

O jogador vinha de uma série de atuações irregulares que me preocupavam. LAmento que Pelé ande pensando ou dizendo que está sendo enganado por mim. Nada tenho contra ele, só quero defendê-lo. Quando vi aquela cena em Milão, em 1963, a que me referi antes, saí aos berros protestando. Felizmente o doutor Hilton Gosling teve consciência de não fazer aquele negócio.

Sobre o doutor Lídio Toledo, médico da seleção: O doutor Lídio é um mau-caráter. Pelé estava com 38 graus de febre num dia, e no dia seguinte apareceu bom. O doutor Lídio me explicou:

- Apliquei nele este remédio. É por isso que ele está bom.

O remédio é Penbritin, um antibiótico que os astronautas que foram à Lua tomaram. Na hora da escalação de Pelé para o jogo seguinte, aquele treino contra o Bangu, perguntei ao doutor Lídio como estava a situação. Ele disse:

- Vai, João. Com aquela bomba, ele está zero quilômetro.

Agora, pergunto eu: como Pelé estará no quilômetro 70, tão envenenado que já foi?

Lamento a pusilanimidade e a insinceridade do doutor Lídio Toledo. Ele que me processe, se for capaz. Tenho o testemunho do jornalista Sandro Moreyra e do radialista Clóvis Filho: Sandro Moreyra segurava os braços de Garrincha, e Clóvis Filho lhe colocava uma toalha na boca para o doutor Lídio aplicar uma injeção no joelho do Mané, a fim de garantir a presença dele na partida do Botafogo contra o Peñarol. Garrincha também pode confirmar isso. O jornalista Doalcei Camargo também. Se Garrincha não entrasse, o Botafogo não jogaria.

O doutor Lídio tem uma habilidade fantástica. Ele pôs o Garrincha no campo, o Botafogo ganhou 8 ou 9 mil dólares, Garrincha ganhou seu bicho. Mas foi aos urros das injeções e infiltrações de cortisona e novocaína, tomada com uma toalha na boca, para resistir à dor. É isso que eu não admito, e por saber disso fui logo dizendo:

- Não quero que façam isso.

Agora, quando tirei Pelé do time, foi para ter a única esperança de contar com ele na Copa do Mundo. Quando eu quis tirá-lo, veio todo mundo em cima de mim:

- João -- disse um diretor da Seleção --, se o Pelé sair, o patrocinador não no paga mais.
- Mas eu não tenho nada com o patrocinador, sou apenas treinador de futebol.
- Não, João, não faça isso, senão não vamos ter mais dinheiro.

Se o médico me disse que Pelé tinha uma lesão de ligamentos no joelho direito, se me disse todos os venenos que ele tomou estes anos todos, se me disse que ele não podia ou não devia jogar de noite, minha obrigação era poupar Pelé, para que ele fosse tratado. Quando o médico falou tudo isso, pedi:

- O senhor pode me dar isso como um laudo por escrito?

Juro sob palavra de honra que até hoje não tenho qualquer laudo por escrito."

[João Saldanha, março de 1970]